quarta-feira, 18 de novembro de 2009

096. Hebreus

DATTLER, Frederico. A carta aos Hebreus. São Paulo: Edições Paulinas, 1980. 175 págs.

1- Introdução

No livro “A carta aos Hebreus” o autor F. Dattler apresenta uma análise geral do livro bíblico com base no trinômio Santuário, Sacerdócio e Sacrifício, dividindo o estudo em dois momentos, o primeiro uma explanação da relevância de do Santuário e do Sacerdócio para a comunidade judaico-cristã com base nos textos do Antigo Testamento (AT) e, no segundo momento empreendendo um comentário do livro bíblico versículo por versículo.

O autor esclarece que o temário Santuário, Sacerdócio e Sacrifício não constituem o objetivo imediato do livro de Hebreus (Hb), mas que são utilizados como “arsenal de conceitos e comparações” para o trabalho desenvolvido, a saber, o incentivo a uma comunidade que se sentia desamparada após a destruição do Templo de Jerusalém, ou seja, uma palavra de exortação. É provável que Hb tenha sido uma “pregação escrita a qual, como o discurso da sinagoga judaica, foi fixada por escrito, sendo-lhe acrescentada depois a conclusão epistolar.” (SCHREINER; DAUTZENGERG, 1977, p. 393).

Dattler não se aprofunda no estudo da evolução do Sacrifício, pois confere a este um grau de uniformidade que o Santuário e o Sacerdócio não mantiveram, sendo assim, mais enfocados no livro. De fato, o autor dispensa quase um terço do livro para apresentar a desenvolvimento desses dois campos.

Para demonstrar o progresso destes dois fatores o autor inicia com a exposição dos vários locais de culto e das linhagens sacerdotais presentes no AT. Dattler destaca a importância da Tenda de Reunião (Êxodo 25), pois nela estavam contidos os objetos sagrados (Arca e Altar) que foram separados em períodos seguintes, mas conservados em santuários, evidenciando a diversidade de locais de culto com sacerdotes correspondentes.

O autor percorre todo o AT indicando as constantes mudanças dos objetos sagrados até o repouso definitivo dos objetos no templo salomônico (I Reis 08,4). Dattler silencia com relação à conquista de Israel pelas nações estrangeiras e não fornece qualquer explicação para o desaparecimento da arca, no entanto, esta posição é compreensível uma vez que a intenção do autor não é apresentar uma história de Israel, mas apenas demonstrar ao leitor a importância do Santuário e Sacerdócio[1].

Dattler aborda a problemática das truncadas genealogias sacerdotais, principalmente de Sadoc (Zadoque) e de Aarão, que para conferir autoridade ao sacerdócio modificaram diversos textos, de tal modo que o “artifício e a arbitrariedade saltam aos olhos” como se pode perceber na confusão de 1 Crônicas 24 em que Sadoc é transformado em filho de Eleazar, filho de Aarão (v.3; Levítico 10.6) e Abiatar é confundindo com o próprio pai Aquimelec. Tais detalhes, segundo Dattler, comprovam a fragilidade desta tradição.

Dentre todas as tradições referentes ao Santuário e ao Sacerdócio hebreu, o Templo de Jerusalém se firmou como o centro religioso irrefutável dos israelitas quer habitantes de Canaã ou dispersos pelo mundo antigo. Mas por que então o “Templo” não é mencionado em Hb, mas apenas a Tenda de Reunião? Dattler explica que o autor de Hb não tomou conhecimento de nenhum dos três templos (Salomônico I Reis 9,1-3; Segundo Templo Esdras 6,15; Herodiano João 2,20) o que implica a data da carta como posterior à destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C. embora Dattler não indique datas ou a destruição do templo.

O autor comenta que Hb quer ilustrar a precariedade dos sacerdócios materiais e passageiros, apenas considerados santos por sua ligação com determinados lugares em condições específicas, em comparação com o sacerdócio do Cristo “cujo santuário não é “desta criação”, mas sim do Céu” e, portanto eterno. De fato, Guthrie afirma que o “sacerdócio de Cristo está diretamente ligado à antiga ordem levítica, mas visa claramente substituí-la” (GUTHRIE, 1983, p.13).

Com relação à autoria de Hb, Dattler é restritivo com a afirmação “Contentemo-nos de uma vez para sempre com os indícios tirados do próprio texto e abandonemos toda espécie de devaneios fantasiosos. O autor não nos revelou o seu nome.”, apesar disto, Dattler acredita ser um judeu não apocalíptico com conhecimento vago da vida de Jesus de Nazaré, no entanto, ele não fornece argumentos que comprovam sua teoria e se confunde ao afirmar que o autor bíblico “não fala em anjos”, ignorando (propositalmente?) os versículos 1,4.5.6.7.14; 2,2.5.7.9.16;12.22;13.2) a não ser que se refira a uma revelação como descrita no Apocalipse, mas Dattler não foi específico e o texto dá a entender as duas possibilidades.

Do local de autoria o autor apenas lamenta que não haja indicação da cidade italiana donde a missiva foi escrita. Porém Kümmel apresenta a tradução de 13,24 “hoi apo tês Italías” como “os que vieram da Itália vos saúdam”, problematizando a questão, pois a expressão tanto pode ser entendida como se o seu autor enviasse saudações àqueles que estão na Itália ou se enviasse saudações daqueles que estão na Itália. Pesa a dúvida nesta questão embora o fato de ser Clemente de Roma o primeiro a confirmar a carta a Hb (I Clem. 2.2) um forte indício da relação Italiana.

Da relação de Clemente de Roma com Hb se pode propor a data desta carta. Todavia, Dattler não emite sequer um comentário acerca do assunto. Guthrie oferece uma boa abordagem da questão e chega à conclusão de que a provável data final para o livro seria anterior à carta de Clemente de Roma (95 d.C) tendo em vista a dependência entre esta e aquela. (I Clem. 36.1-2; Hb 1.3).

Com relação à possibilidade de autoria Paulina[2] amplamente aceita até tempo recente, Dattler apresenta semelhanças e diferenças entre a teologia paulina e Hb, mas o faz de forma superficial e não abarca a questão histórica da autoria paulina ou a contribuição de Orígenes, Agostinho e a separação feita por Lutero, que constituem importantes referências para o estudo do livro[3].

As principais diferenças apresentadas entre Paulo e Hb são: em Paulo a justificação pela fé no Cristo que é redentor e vítima em oposição às observâncias da Lei mosaica (Gálatas 2,11-21; 3,1-6; 4,9.10), mas em Hb a justificação pela fé no Cristo que é sumo sacerdote em oposição aos sacrifícios transitórios e imperfeitos da Lei mosaica (9,11-13). Outra diferença assaz berrante é a ressurreição. Paulo identifica a ressurreição do Cristo como modelo da nossa, que é obra de Deus e, que assim como foi com Cristo, será conosco (1 Coríntios 15; 5 e 8). Este entendimento primordial ao Cristianismo primitivo e contemporâneo não está presente em Hb e, a “maior ideia dominante na cristologia de Hb - o sumo sacerdócio de Cristo – acha-se completamente ausente nos escritos de Paulo.” (KÜMMEL, 2004, p. 518).

Dos destinatários da carta Dattler propõe que sejam judeu-cristãos helenistas da diáspora, ou seja, vivendo fora da Palestina. O autor assevera que o teor da carta era de interesse apenas de cristãos e a referência a “nossos pais” presente no v.1 corrobora a identificação judaica. Esta posição é impugnada por Kümmel que a considera improvável pelo fato da “referência à necessidade da fé em Deus” (6,1; 11,6). Ele considera com mais possibilidade a proposição de E. M. Roeth (1836) de que os leitores eram gentios cristãos, devido ao entendimento de que os cristãos da igreja primitiva eram encarados como herdeiros das bênçãos e das promessas do povo de Deus do AT e assim se consideravam o verdadeiro Israel, o povo escolhido de Deus para quem o AT foi escrito. (Gálatas 6,16; 1 Coríntios 10,1.11; 1 Pedro 1,12; 2,9; Romanos 15,4) e esta era de fato a tradição didática helenístico-sinagogal, isto é, fazer “falar Deus, Cristo, o Espírito Santo, como sujeitos diretos, e do outro, usa as palavras da Escritura “com total independência” do seu contexto histórico, liga-as uma com as outras e amplia-as para usá-las em uma nova mensagem teológica” (SCHREINER; DAUTZENGERG, 1977, p. 391).

Dattler apresenta duas estruturas para Hb. A primeira consiste de uma visão geral composta de: (1) A pessoa de Cristo (1-7), (2) A obra do Cristo (8-10) e (3) A nossa obra (11-13). A segunda visão é mais detalhada e é formada por textos de ensinos teóricos (E) e de ensinos moralizantes (M) assim divididos: (1) E 1 + M 2,1-4, (2) E 2,5-18 + M 3,1, (3) E 3,2-6 + M 3,7-4,16, (4) E 5,1-10 + M 5,11-6,20, (5) E 7,1-10,18 + M 10,19-39 e (6) E 11 + M 12-13.

A primeira estrutura é muito semelhante à estrutura desenvolvida por W. Nauck, embora Dattler mencione Nauck apenas passageiramente em sua obra. De fato, Nauck apresentou três divisões para Hb num esquema fixo de uma exposição teórico-teológica seguida por uma parte parenética que forma o auge da ideia teológica sendo: (1) Ouvir a palavra de Deus no Filho, Jesus Cristo, que é superior aos anjos e a Moisés (1,1-4,13), (2) Aproximemo-nos do sumo sacerdote do santuário celeste, e mantenhamos firme a nossa confissão (4,14-10,31) e (3) Perseverar na fidelidade a Jesus Cristo, que foi quem iniciou e aperfeiçoou a fé (10,32-13,17) [4].

Fica evidente que Dattler chama “Ensino Teórico” ao que Nauck denomina “Exposição Teológica” e “Ensino Moralizante” à “Parênese”. O surpreendente é que Dattler não utilizará estas divisões quando comentar o texto bíblico versículo por versículo. Ele adotará uma terceira divisão ainda mais detalhada e que em nada se parece com as duas apresentadas.

No segundo momento de seu estudo Dattler traduz o texto bíblico e acrescenta uma pequena crítica textual com base em vários manuscritos e códices importantes como o Códice Sinaítico, Códice Vaticano, Códice Alexandrino, Códice Paririenses e o Códice Beza.

Em seus comentários Dattler apresenta em raras ocasiões a explicação exegética de uma passagem do AT e em seguida explica como o autor de Hb empregou a passagem, mas deixa claro que abandonará o “terreno da história” para se ocupar da Teologia cristológica até o último capítulo.

Desta Teologia Dattler proporciona a visão do Cristo que é visto primeiramente como profeta e depois como herdeiro universal devido a sua filiação eterna. Ele interpreta o AT como revelação do Cristo que viria no NT e lembra ao leitor o “mosaico” de passagens do AT presente no texto de Hb.

Dattler segue a linha proposta pelo autor de Hb e aborda na mesma ordem da carta (1) a encarnação do Cristo e sua obra, (2) a morte como consumação que ele traduz como o “estado de perfeição final alcançada na outra vida” e daí se percebe claramente a ausência do tema “ressurreição” em Hb e (3) o novo papel do Cristo como sumo sacerdote celestial.

Este três tópicos principais estão entre as trinta e cinco divisões que Dattler utiliza.

A dura passagem de 5,11-6,8 é entendida por Dattler como uma reciclagem catequética e ele cita o exemplo de Paulo que passou por semelhante problema em Corinto (1 Coríntios 3,1-3).

O autor ainda cita o paralelo entre Jesus e Melquisedec para fortalecer a imagem do Cristo como superior ao sacerdócio terreno e, assim desenvolver o pensamento de um novo sacerdócio e uma nova aliança que faz a conexão com uma nova Tenda, com um novo Sacrifício que exige uma nova conduta do fiel e uma nova fé seguindo para os exemplos dos heróis judaicos do AT que inspiram a perseverança, e esta se dá num momento de aflições que Dattler não alude apenas indicando o que ele chama de “Pedagogia Divina” isto é, a correção feita por Deus com castigos corporais e por fim segue alguns avisos e saudações.

2- Relevância

A leitura de “A carta aos Hebreus” de Dattler é importante devido à proposta do autor de apresentar uma explicação prévia do Santuário, Sacerdócio, e Sacrifício. Esta abordagem não está presente nas demais obras consultadas e consiste de um valioso material para a compreensão da carta de Hb.

Sem a leitura prévia deste material, o leitor pode não entender a importância dada pelo autor de Hb ao sacerdócio do Cristo. De fato, após o exame cuidadoso desse trinômio para Israel é possível perceber que o Cristo de Hb é sobremaneira exaltado em relação aos demais livros do NT, sendo possível afirmar que em nenhum outro momento do NT Cristo chega a um nível mais sublime do que em Hb.

3- Metodologia do Texto

Dattler se propõe a apresentar um estudo da carta aos Hebreus que aborde o Cristo-sacerdote que encerra a questão do Santuário e Sacerdócio ao penetrar no santuário celestial.

A obra de Dattler é interessante por apresentar esta visão histórica que engloba AT e NT, mas o autor abdica de informações importantes que auxiliariam o leitor do texto na compreensão de Hb.

Pelo estudo da linguagem e da forma de Hb alguns estudiosos (Moule, Schreiner, Dautzengerg) entenderam nesta carta uma liturgia que representava o aspecto histórico-teológico da igreja primitiva, mas Dattler faz apenas uma menção à forma litúrgica e mesmo assim como possibilidade em uma variação do v.8 que tem um “amém” no final de acordo com o Códice Beza.

De igual modo, não há explicação na obra de Dattler acerca de quais eram as aflições que motivariam o autor de Hb a escrever uma carta de exortação. Moule apresenta duas possibilidades sendo: (1) se os leitores fizessem parte do círculo do cristianismo helenista de Jerusalém e, portanto após a morte do protomártir Estevão (o autor compara as afirmações e Estevão com as idéias presentes em Hb e encontra muitas semelhanças) as perseguições eclodiram havendo então razão para lembrar a expropriação dos bens e o encarceramento mencionado em Hb ou (2) quando na guerra de 66-70 os judeu-cristãos se recusaram a participar do movimento de resistência judaica, a saber, a insurreição dos zelotas à santidade do templo, iniciou um movimento de pressões políticas e psicológicas a fim de que os judeu-cristãos demonstrassem sua fidelidade à religião dos ancestrais e à nação, assim, o autor de Hb responde dizendo que não se deve desviar do propósito devido aos escárnios de que cristãos são ateus por se separarem dos objetos sagrados de culto, pois “todas estas coisas nós temos e as temos em nível absoluto, no céu”. (MOULE, 1979, p.58).

A crítica textual presente na obra não é utilizada nos comentários do autor, o que leva o leitor a se perguntar da razão de incluí-las.

Se Dattler acerta em explicar o contexto do trinômio em Israel no primeiro momento de sua obra com vastas referências ao assunto e explicações pormenorizadas das questões relativas, ele se demonstra extremamente limitado em segundo momento, pois seus comentários são, em sua maioria, restritos a uma contextualização do texto escrito em Hb às palavra atuais, caracterizando apenas um repetir enfadonho de conceitos claros no texto bíblico.

4- Justificativa e indicação

O livro é indicado a todos os estudantes de Teologia e cristãos que desejam se aprofundar no entendimento da imagem do Cristo como sumo sacerdote na Igreja primitiva e que tenham o interesse de entender como os cristãos do Cristianismo primevo liam e alcançavam e interpretavam o AT. Salienta-se que a obra de Dattler deve ser percebida como introdutória sendo recomendada a leitura das obras indicadas pelo próprio autor em sua bibliografia.

5- Área Teórica

· Hermenêutica Bíblica;

· História do Cristianismo;

· Teologia Sistemática.

6- Bibliografia

GUTHRIE, Donald. Hebreus Introdução e comentários. São Paulo: Edições Vida nova e Editora Mundo Cristão, 1987.

KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2004.

MOULE, Charles Francis Digby. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1979.

SCHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e Exigências do Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1977.



[1] Para uma abordagem abrangente do destino dos objetos sagrados do Templo de Jerusalém verificar DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. Vol. 2: Da época da divisão do reino até Alexandre Magno. Rio de Janeiro: Editora Sinodal, Vozes, 1997. p.421-432.

[2] Segundo Kümmel, a Pontifícia Comissão Bíblica decidiu em 1914 que Hb deveria ser arrolada aos escritos paulinos mesmo que este não a tenha produzido na forma em que está atualmente, mas os estudiosos católicos desde então chegaram à conclusão de Hb não é de autoria paulina e desde que não violem a veritas fidei et morum (“verdade referente à fé e à moral) os estudiosos católicos gozam de liberdade em relação decisões da Pontifícia Comissão Bíblica.

[3] Dentre as obras consultadas na elaboração deste trabalho indicamos Introdução ao Novo Testamento (p.514-517) de Kümmel e Hebreus Introdução e Comentário ( p.14-17) de Guthrie por serem mais detalhadas com relação à tradição de Hb.

[4] Para o estudo da estrutura elaborada por W. Nauck, cf. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2004.

Um comentário:

  1. Não tem nada (eu disse "nada") a ver com o seu texto .... vou postar de um dos seus posts antigos

    Você é Anselmo. Anselmo na Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Santo_Anselmo

    Anselmo
    83%
    Santo Agostinho
    67%
    Paul Tillich
    58%
    Friedrich Schleiermacher
    58%
    Karl Barth
    58%
    Jonathan Edwards
    42%
    Charles Finney
    33%
    Jurgen Moltmann
    17%
    Rudolf Bultmann
    17%
    Martinho Lutero
    0%
    João Calvino
    0%

    PS: o papado é diabólico???? rsrsrs ....

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