sábado, 28 de novembro de 2009

100. Jó e as teologias da retribuição e prosperidade

É natural do ser humano buscar respostas para as questões inquietantes da vida. De todas as demandas que perturbam o homem certamente a morte e o sofrimento são as mais debatidas. Muito se diz acerca da morte e mais ainda acerca do sofrimento. Faça o leitor a experiência de procurar livros com a temática funesta e o Google apresentará mais de oito milhões de resultados. Caso pesquise pelo “sofrimento” então que também pesquise “dor” e “pesar” e os frutos se multiplicarão. O livro bíblico “Jó” é umas das diversas opções de leitura acerca do tema.

O livro de Jó desperta a curiosidade dos acadêmicos e muito se tem escrito acerca das dificuldades de leitura da obra. De fato, Norman K. Gottwald afirma que os ingredientes de gêneros presentes no livro são numerosos e que se destacam por apresentarem estruturas muito diferentes. A lamentação individual, o discurso de controvérsia, o apelo à antiga tradição e uma fórmula de sumário-avaliação permeiam o livro.

Mas não são apenas os acadêmicos que demonstram interesse pelo livro de Jó. É muito comum que líderes religiosos utilizem o livro bíblico em suas mensagens e é do senso comum que o personagem represente a paciência, como se percebe na frase “tem que ter paciência de Jó”.

Academia e a Igreja se separam com relação à interpretação do livro. Enquanto a Academia adota em sua maioria uma leitura diacrônica, a Igreja adota uma leitura anacrônica[1].

Na leitura ou abordagem anacrônica, a Igreja, ou seja, aqueles que fazem parte de uma comunidade de fé de acordo com Cristianismo lêem o livro de Jó segundo a Tradição. Esta auxilia os leitores a compreenderem Jó como personagem rico que perde tudo o que tem, incluindo seus filhos e filhas, e sofre de chagas dos pés à cabeça, mas por ser paciente e não blasfemar contra a divindade é recompensado com o dobro de tudo que possuía, incluindo filhos e filhas.

A leitura diacrônica, no entanto não enxerga qualquer paciência em Jó. Pelo contrário, vê no personagem quase um blasfemador. Não há tradição que oriente os leitores diacrônicos, mas há um conjunto de ferramentas utilizadas para a reconstrução do contexto histórico-social da época do autor do texto. O personagem não é importante para o leitor diacrônico, pois este o entende como um ser, fictício ou não, que desempenha um papel dentro de uma esfera construída por um autor. É o autor e seu mundo que interessam, pois só pela compreensão da intentio-auctoris é possível chegar ao sentido do texto.

Tendo em vistas estas duas possibilidades apresentadas é possível entender como os líderes religiosos utilizam o texto de Jó em suas igrejas e comunidades. O texto bíblico favorece e até alicerça a Teologia da Prosperidade (TP) tão bradada dos púlpitos. Segundo esta teologia, os cristãos fiéis a Deus não são derrotados definitivamente pelo mal, mas vencem e são prósperos em tudo que fazem. Esta prosperidade é enfatizada no que concerne aos bens materiais. As muitas campanhas e slogans prometem uma reviravolta na vida daquele que se dispuser a ingressar nestas igrejas e que assumir um compromisso com Deus. Este compromisso em geral é uma oferta voluntária programada durante algumas semanas, também conhecida como “corrente”. Mensagens como “Vida vitoriosa”, “Pare de sofrer”, “A mão de Deus está aqui”, “Sinta o poder de Deus” enfeitam outdoors e letreiros de igrejas.

O grau de influência da TP é tão impressionante que uma das músicas dita “evangélica” mais conhecida no Brasil e, jocosamente apelidada de “melô do Imposto de Renda”, tem como refrão as seguintes frases:

Restitui! Eu quero de volta o que é meu
Sara-me! E põe Teu azeite em minha dor
Restitui! E leva-me às águas tranqüilas
Lava-me! E refrigera a minh’alma
Restitui...

A TP é apenas uma releitura da Teologia da Retribuição (TR), também chamada de “Justiça Distributiva”, presente no livro de Jó. A TR é o entendimento de que todas as ações e pensamentos humanos são avaliados pela divindade que retribuirá individualmente de acordo com o que for merecido. Se uma pessoa pratica boas obras então receberá bênçãos, mas se pratica atos maus receberá maldições, que podem ser castigos iguais aos que Jô recebeu.

Os três amigos de Jó, Elifaz, Bildade, Zofar e o misterioso quarto elemento Eliú tentam convencê-lo de que a divindade apenas cumpre o papel e que os castigos infligidos se devem às atitudes de Jó. Jean Louis Ska afirma que eles

fizeram de tudo para levá-lo a admitir que ele era um caso como os outros, sujeito à regra geral da justiça distributiva: Deus recompensa o justo e pune o ímpio; se sofres, é porque és punido; se és punido, é porque há pecado; arrepende-te e Deus te curará.

Esta teologia ainda está presente no meio evangélico brasileiro. A Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus são suas mais conhecidas representantes, mas muitas outras denominações têm apresentado discursos semelhantes, apresentando um deus ex machina diligente em castigar a todo aquele que não seguir as doutrinas, que são transmitidas por estes líderes, como verdades absolutas. O impressionante é a afirmação contraditória de que pregam uma divindade que é amor.

Conquanto seja uma teologia que inspire no fiel a mudança de comportamento e o abandono de atitudes prejudiciais, é uma forma de dominação, pois não é pela boa vontade que o homem altera seus costumes, mas pelo medo de ser castigado.

Embora muitos estudiosos considerem que a leitura diacrônica não tenha lugar no ambiente eclesiástico e que a própria Igreja a exclua, mesmo sem ter conhecimento aprofundado da questão limitando-se a considerá-la como heresia, é justamente pelo Método Histórico-Crítico que se pode apresentar uma nova leitura deste livro sapiencial indo de encontro às TP e TR.

O livro de Jó é descrito como um livro Sapiencial, ou seja, “Sabedoria”. Trata-se de um modo de ver o mundo baseado na observação e reflexão. Segundo Gottwald a meta do escrito sapiencial é desenvolver táticas de vida que farão parte da existência da pessoa com a ordem percebida do mundo. É uma busca por um modo de vida ético entre os seres humanos inseridos em situações comuns a todos.

Entender que o movimento Sapiencial é contrário ao culto praticado em Israel é um erro, pois ser um israelita no tempo do AT é ser religioso, assim como ser romano no período do Império Romano é ser religioso. A religião está em todos os aspectos da vida. Mas este movimento enxerga a possibilidade humana de refletir e chegar à uma determinação da verdade. O culto a IHWH possivelmente era praticado pelos integrantes do movimento, mas com a diferença de que era “algo cujo valor e significado tinham de ser postos à prova, determinados e integrados a todo o resto de conhecimento e de verdade.” (GOTTWALD, 1988, p.525).

Haroldo Reimer identifica uma “crise na sabedoria” devido ao mecanismo do sistema de retribuição não ser mais suficiente como regulador da ordem social tendo em vista a experiência cotidiana que demonstrava a opressão aos justos enquanto os ímpios prosperavam. Esta crise se dá no período pós-exílico quando as constantes invasões, deportações e derrotas do povo de Israel aumentaram as experiências de sofrimento e empobrecimento que foram discutidas à luz da teodicéia babilônica.

De acordo com Osvaldo Luiz Ribeiro a influência babilônica é evidente no livro, principalmente em 7,12 quando Jó faz referência ao mito da criação babilônico ao questionar se ele mesmo era o “monstro marinho”, conhecido como Tiamat no mito cosmogônico Enuma Elish.[2]

Ainda de acordo com Ribeiro o livro bíblico pode ser dividido da seguinte forma: Prólogo: 1-2 em prosa, Núcleo: 3,1-42,6 em poesia e Epílogo: 42,7-17 em prosa.

Esta divisão favorece a tese de que o prólogo e o epílogo fazem parte de uma história já conhecida em muitas nações e regiões do AT cujo tema é o justo sofredor como se pode perceber na extensa relação feita por Ribeiro

Constitui “evidência externa” o fato de que “de uma série de textos paralelos do antigo Oriente se depreende que o livro de não trata de um tema genuinamente israelita”. Mencionam-se vários desses “textos paralelos”. 1 – Homem e Deus, ou Jó Sumério, datado de cerca de 2.000 a.C. 2 – Ludlul bel nemeqi (“Eu enaltecerei o senhor da sabedoria”), mais conhecido como Jó Babilônico, datado de cerca do século XII a.C. 3 – O Diálogo de um Sofredor com seu Amigo Religioso, também conhecido por outros dois nomes: Teodicéia Babilônica e Qohelet Babilônico, datado entre os anos 1.000 e 800 a.C. 4 – vários excertos da literatura egípcia, caracterizados como “controvérsia sapiencial”: O Lamento do Agricultor, O Diálogo da Pessoa Cansada da Vida com sua Alma e as Palavras de Exortação de Ipu-Ver, por exemplo, datados do fim do terceiro milênio. 5 – na literatura grega, Prometeu, Os Persas (de Ésquilo), bem como dramas de Eurípedes, todos datados entre os séculos VI e VIII.

O núcleo do livro apresenta uma refutação à TR e Gottwald afirma que o autor está satisfeito em demonstrar que há

sofrimento inocente, algo que a dogmática sapiencial não poderia tolerar (...) “inocente” não quer dizer que o sofredor esteja sem pecado, mas apenas que o sofrimento acontece uma a outra vez, para o qual nós não podemos apontar nenhuma razão formulaica.

O único argumento que resta para que a TR e a TP ainda se utilizem de Jó como personagem central de suas mensagens é o verso 42,5-6 em que a tradição lê o arrependimento do personagem, conditio sine qua non para a benção de Deus. No entanto, Ribeiro oferece a tradução de Jack Miles e a argumentação que o verbo presente no v.6

não se faz seguir imediatamente de um complemento, qualquer que seja, de modo que os complementos “de mim” e “me” das traduções (...) “são acrescentados da cabeça do tradutor” – não existem no texto hebraico, e foram pressupostos pelos respectivos tradutores. Jack Miles aposta que tal tradição derive da LXX, cujo tradutor acrescentou literalmente o complemento, cuja força ter-se-ia migrado para a tradição de leitura de Jó.

Se a tradução de Jack Miles estiver correta, então o personagem não se arrepende. Desta forma, “Jó pôde rebelar-se, e suas palavras puderam beirar a blasfêmia, mas é a ele que Deus aprova e não a seus amigos,” (SKA, 2000, p. 35). A tradução de Miles é:

“Tu ouves, eu falarei’, dizes, ‘eu perguntarei e tu responderás’.

Ouvira falar de ti, Mas agora que meus olhos o viram,

Estremeço de pena pelo barro mortal.”

O que o personagem fala é um lamento pelo homem diante de uma divindade muito além da compreensão e condições características da raça humana.

Não há paciência em Jó. Ele lamenta as perdas, resmunga das dores, amaldiçoa o dia em que nasceu e questiona a divindade acerca das aflições humanas. Talvez seja justamente por isso que o autor silencia Deus diante de Jó. Após as últimas palavras de Jó, Deus se volta contra os “amigos” que não falaram aquilo que era “reto”. É visível que os amigos representam a TR, o templo e o poder da época e que são todos condenados quando comparados àquele que era considerado pecador e sofredor da justiça divina.

Jó se recusa a carregar o fardo que lhe é constantemente imposto e isto não faz dele um super-homem, mas sim um homem. Ele se permite chorar e sentir a dor que as agruras da vida lhe proporcionaram, e no decorrer da história ele aprenderá que as circunstâncias da vida acometem a todos os seres e que não é a fidelidade em um ser divino que garantirá a riqueza, a paz e a saúde na terra.

Essa é uma mensagem que os líderes religiosos não transmitem quando pensam em Jó. Fazem dele um ser tão fiel e forte que sua humanidade é imperceptível.

A morte e o sofrimento permanecerão no habitual dos seres vivos e no imaginário de cada indivíduo, mas se prestarmos atenção às atitudes e palavras que o autor do livro bíblico atribui a Jó, entenderemos que não há sofrimento necessariamente por causa de pecado e que a morte não é um castigo divino, mas são apenas etapas que não podem ser evitadas, pois são elas que nos constituem como verdadeiros seres humanos.

Referências Bibliográficas

GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Edições Paulinas, 1988.

REIMER, Haroldo. Pobre Sujeito: sobre os direitos do pobre no livro de Jó. Disponível em: <http://www.haroldoreimer.pro.br/pdf/Pobre%20Sujeito.pdf>. Acesso em 28 nov. 2009.

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Os seis versículos: sobre a estrutura e o sentido de Jó. Disponível em <http://www.ouviroevento.pro.br/biblicoteologicos/Os_seis_versiculos.htm>. Acesso em 28 nov. 2009.

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Entre a dor, as palavras e a fé. Disponível em <http://www.ouviroevento.pro.br/curtissimas/entreador.htm>. Acesso em 28 nov. 2009.

SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento?. In: SIMIAN-YOFRE, Horácio. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p.34-37.



[1] Adota-se aqui a nomenclatura utilizada por Simian-Yofre em sua obra Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

[2] Para uma descrição detalhada do Enuma Elish cf. COHN, Norman. Cosmos, caos e o mundo que virá: as origens das crenças no Apocalipse. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

4 comentários:

  1. Ei, faltou a referência do Jean Louis Ska...

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  2. Faltou? Pensei que tivesse colocado...

    Obrigado pela lembrança.

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  3. Faltou foi você dizer que eu te dei a idéia deste post.

    que absurdo ...

    Só uma nota, que ficou subentendida (logo não é uma correção), a tradução dos setenta (forma carinhosa de dizer) em nada justifica a TP, apenas demosntra a ma-fé da leitura bíblica por parte de muitos. Não considero nem mesmo incapacidade, vez que o versículo não é nem 2% de todo o texto.

    Abraço meu amigo ladino.

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  4. A ideia deste post foi tua? Se foi, peço desculpas! Devo ter esquecido.

    Concordo que a tradução da LXX não justifica a TP, apenas é usada.

    Um dos males que mais vemos é o texto bíblico ser utilizado como refém. Não pode mais falar. Fala aquilo que se quer que ele fale. Por que então manter o texto? Se os significados são criados então por que o texto? Que os textos sejam dispensados e que os significados criados sejam os novos textos.

    Ficarei feliz em ter o texto livre. Sem significados programados.

    Senhoras e Senhores, jamilon, meu finório amigo.

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