sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

117. Do passado

Conheço pessoas presas ao passado. Pessoas que sofreram grandemente ou que erraram de tal forma que não conseguem se perdoar.

Eu sou uma dessas pessoas. Tenho uma memória emocional que me impede de esquecer fatos considerados marcantes de alguma maneira.

Às vezes o cérebro refaz as conexões entre neurônios e as sinapses estabelecem redes (Edgar Morin) que trazem lembranças boas e algumas que gostaria de esquecer.

É totalmente natural.

Esta pequena máquina fantástica que é o cérebro não nos permite esquecer e ainda bem que é assim.

Ainda bem que podemos lembrar daquela pessoa que foi especial quando ainda nem sabíamos o significado de amizade. Ainda bem que podemos lembrar de uma gargalhada que causamos. Ainda bem que somos seres de memória.

Nossa memória é ativa e, ativada, por estas conexões com o mundo. Às vezes sorrimos porque uma imagem aparentemente banal e sem sentido nos lembrou algo que foi gostoso de viver. Às vezes choramos (aqueles que têm lágrimas) por que uma coisa boba nos lembrou algo que gostaríamos de esquecer.

O recordar é natural de nossa máquina biológica. Já pensou se esquecessemos tudo? Se não lembrássemos que aquela planta não pode ser comida, pois causa dores; que aquele penhasco é perigoso, pois ao cair lá as pessoas não voltam; que aquela coisa brilhante e quente que ilumina a noite pré-histórica pode causar uma espécie de dor incrível na pele...

Somos adaptados para lembrar. Então porque o recordar causa dor?

Simples.

Significados. Atribuímos significados a um fato. E os significados atribuídos podem ser originados do pensamento racional ou apenas de um sentimento. Quando descobri o lado imundo das organizações religiosas (descobri trabalhando nelas) fiquei tão triste que todas as vezes que vou a alguma reunião meu cérebro avisa do perigo de estar ali. Muitas vezes ele avisa, mas eu ignoro e a reunião é proveitosa. Daí vem a importante questão de aprender a lidar com sua memória.

Há muito tempo conheci uma mulher que sofreu extremo descaso quando criança pela madrasta. Ela, agora com mais de cinquenta anos me contava da dor que sentia quando lembrava da madrasta. Era algo palpável e as lágrimas molhavam o rosto vermelho. Em meu afã de bom cristão e com o pensamento besta de ter de dizer a alguém que o perdoar é uma ordem divina não pude perceber a intensidade da dor que aquela mulher demonstrava. Quando ela negou o perdão à madrasta, me senti irado com ela, aliás como todo "bom cristão".

Tempos mais tarde aquela madrasta adoeceu gravemente. E para calar este "bom cristão" foi aquela mulher magoada pelo desprezo que esteve cuidando com amor ímpar daquela doente terminal. Foi aquela mulher que cuidou da casa dela, que a alimentou, que a limpou e que esteve com ela até a hora derradeira.

A lembrança e a mágoa nunca foram apagadas, mas quando aquele ser humano precisou de ajuda o passado ficou para trás. A dor não foi esquecida, mas o passado não foi forte suficiente para destruir o presente e o futuro.

Tive extremo orgulho daquela mulher. Cristã. Sem ser cristã como concebemos.

Este "bom cristão" calou-se envergonhado. Me arrependi de ter dito o que disse àquela mulher. Ela sabia muito mais de perdão do que eu. Lembrar desta história me deixa embaraçado, mas me deixa feliz de saber que aprendi.

Talvez o perdão seja isto. Mesmo lembrando de algo que foi doloroso jamais permitir que a dor seja tão forte que nos paralise. Jamais deixar de fazer o bem por causa do passado. Jamais permitir que as lembranças de algo nos tornem infelizes. Não é um esquecer. É uma gradativa percepção que o que aconteceu é passado. Assim a passagem bíblica parece tão compatível:

"Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo." 2 Coríntios 5.17

Em uma determinada cena do filme "A paixão de Cristo" do diretor Mel Gibson, Jesus cai como criança e sua mãe, Maria, o pega nos braços. Quando está sendo levado para o Gólgota ele cai novamente e é novamente recebido por Maria. Jesus diz: "Eu renovo todas as coisas.". Na época em que vi o filme detestei isso. "Não está na Bíblia!", "Acréscimo!", "Heresia!". Hoje acho lindo.

Por isso gosto da cerimônia do batismo cristão. Principalmente o por imersão. A pessoa entra na água como em um túmulo e se deita com a ajuda de um pastor. É a representação da morte do velho homem. A água cobre todo o corpo da pessoa como se fosse enterrada e logo após, em menos de dois segundos, ela é levantada rapidamente pelo pastor e diáconos representando seu novo nascimento. Chego a me arrepiar quando lembro disso e é inevitável não lembrar do meu batismo.

Os cristão acreditam de tal forma nesta morte e novo nascimento que a vida anterior ao batismo é muitas vezes deixada para trás definitivamente. O que faziam (se considerado impróprio agora) é deixado no esquecimento. A nova criatura com Cristo é completamente nova. Restaurada de tudo. "Eis que tudo se fez novo". Nova carne. Novo espírito. Novo pensar. Novo ser.

Conquanto reconheça as imperfeições do batismo, no que se refere ao ritual sou completamente envolvido por seus significados.

Algumas pessoas se fazem novas não por estarem com Cristo, mas por conseguirem pensar em si mesmas como merecedoras de esquecer o passado. Acho justo. Aquele que se batiza também se julga assim e o demonstra com a vontade de ser uma nova pessoa. A diferença entre ambas é que um escolheu o caminho por si e o outro por Cristo, mas os dois fazem do passado e das dores uma lembrança sem força vital. O que importa é como me portarei daqui em diante.

Nos dois casos foi necessário que a própria pessoa se perdoasse. Aqueles que se batizam esperam o perdão de Deus por intermédio do Cristo. Tenho visto muitos que acreditam piamente no perdão divino, mas vivem atormentados por anos por não conseguirem se perdoar. Vejo um todos os dias no espelho.

Abre parêntesis, escrevo mais para mim do que a maioria imagina, pois tenho consciência de meus pecados, fecha parêntesis.

Acreditar que um ser perfeito pode perdoar, mas que se é tão sujo ao ponto de querer desaparecer e não se suportar é contraditório. Para rebater este argumento gosto da passagem de Jesus descrita em Mateus 9.1-8. Vendo um homem paralítico ser trazido numa cama Jesus diz: "Filho, tem bom ânimo, perdoados te são os teus pecados.". Os escribas dizem que ele blasfema e Jesus diz: "Por que pensais mal em vossos corações? Pois, qual é mais fácil? dizer: Perdoados te são os teus pecados; ou dizer Levanta-te e anda?".

Pelas palavras de Jesus o mais difícil é perdoar. Mas ele perdoa.

Crer num Deus de amor também é crer que se pode ser perdoado, então não há razão para se enxergar como o pior ser do mundo. Se você acredita que Deus te ama, então como não podes se amar? E como podes não se perdoar? O que há em teu passado que seja mais forte do que o Deus que você acredita?

Gosto da passagem de Jesus por que a dificuldade em relação ao passado está presente. Não é algo fácil de lidar e pode ser algo do nosso passado ou do passado de alguém próximo de nós. Mas é possível.

Se a dor de tuas lembranças é corrosiva, então já passou da hora de se perdoar. Já passou da hora de enfraquecer estas lembranças. Estamos longe da realidade do maravilhoso filme "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" e agradeço por isso. Seria muito mais fácil, mas seria fugir da natureza de nosso aparelho psíquico.

Prefiro lembrar, sorrir, sofrer e superar, pois isto me torna o homem que sou. Isso é viver.

Como está a sua vida? Você está vivendo ou se escondendo do passado de fantasmas tristes?

Ao finalizar a leitura deste texto talvez nada fique para ti, mas lembre-se pelo menos disto:

O que quer que seja só existe enquanto tu acreditas. Deixas de acreditar e vês quão rápido as dores somem.

6 comentários:

  1. Nossa ... uma ponta de humanidade num coração, outrora, tão sombrio.

    Isto me deixa mais feliz ...

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  2. Às vezes me assusto com as imagens que as pessoas têm de mim...seja de outrora, seja de agora, mas queria ser como dizem que sou pelo menos por 5 minutos para saber como é.

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  3. Achei interessante a colocação sobre a dificuldade do perdão a si próprio. Concordo. Às vezes temos a certeza de que Deus e até outras pessoas nos perdoaram por algo, mas nós continuamos sem nos perdoar a nós mesmos.

    Houve um comentário seu em outra postagem que terminou com a seguinte frase "Ao ler o que escrevemos no passado, estamos, de fato, lendo outra pessoa." Acho que a chave da questão passa por aí: no passado, éramos outras pessoas, que não conheciam nem haviam passado por algumas experiências pelas quais hoje já passamos. Isso precisa ser levado em conta no nosso "tribunal interno", onde frequentemente o "eu" atual coloca o "eu" do passado no banco dos réus. Talvez transformar este tribunal em um diálogo entre os dois "eu" seja o mais adequado. Talvez dissesse nosso amigo Doutor Carlos, uma "audiência de conciliação" (rsrs). Colocá-los para conversar...

    Vejo em Paulo, outrora Saulo perseguidor de Cristãos, um exemplo disso. Naqueles três dias sem a visão física, eu creio que houve internamente esse processo entre Saulo e o "recém concebido" Paulo. Penso eu que só depois disso estava ele pronto para nascer verdadeiramente no batismo ministrado por Ananias. Não creio que tudo tenha se resolvido dentro de Paulo nos 3 dias, mas iniciou-se o diálogo que certamente se desenvolveu por toda sua vida. Vejo um reflexo disso em At 26,4-20, com a "auto-biografia" de parte de sua vida.

    Finalizando com um jogo de prefixos e palavras: O ideal nem seria um diálogo, mas um triálogo: "eu" Passado, "eu" Presente e Deus Eterno.

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  4. As "audiências de conciliação" são muitas vezes tão difíceis...as partes não entram em acordo de jeito algum e parece uma briga. Seja como for, gosto de sua proposta, a saber, transformar o julgamento em diálogo.

    Tive oportunidade de ter um bom diálogo durante a semana passada no ANVER-SS/10. Cheguei a algumas conclusões. Estou realmente alividado.

    Diálogo. Eis a chave que coloquei neste blog desde o início e que agora é estendida até o eu interno.

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  5. Esta proposta do diálogo entre as fases da vida, eu a ouvi em uma pregação do Pe. Fábio de Melo há algum tempo. Se quiser assisti-la, coloquei-a numa postagem de meu blog:
    http://anjobarro.blogspot.com/2010/02/arsenal-de-infantilidades-pe-fabio-de.html
    Toda essa pregação é muito interessante, mas se não tiver tempo, este tema é tratado por volta dos 43:40 minutos.
    Um abraço!

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