quarta-feira, 30 de setembro de 2009

061. Da Razão e da Fé.

Vivemos no silêncio de nossas palavras. Falamos muito. Discorremos, discutimos, ouvimos e somos ouvidos e no final nossas palavras são silêncio. Silêncio ensurdecedor que dói. Silêncio, pois buscamos ouvir a resposta de um ser metafísico, mas apenas ouvimos as vozes humanas que nada respondem e que não podem ser consideradas como expressão da palavra divina tão esperada.

Existem dois grupos com posturas totalmente diferentes com relação a este silêncio. Aqueles que não podem ignorar o século XIX e a obra de Kant e Hegel e aqueles que estão na época medieval e, que, portanto não suportam a idéia kantiana de que é impossível conhecer a coisa em si ou o objeto que está fora do campo fenomenológico da experiência.

Como já está declarada no primeiro parágrafo a impossibilidade de aceitar uma palavra humana como divina, é certo de que o autor aceita o séc. XIX e que não mais vive na época medieval.

Aceitar as construções filosóficas dos séculos XVIII e XIX traz imediatamente a dificuldade de conciliar a razão e a fé. Para aqueles que vivem na era medieval não há este problema, pois a fé e a razão não são coisas diferentes. De fato, para uma pessoa que vive no mundo encantado não há qualquer outra explicação para as circunstâncias da vida do que a ação de seres mágicos que permeiam o mundo de tal maneira que se fazem dele por origem. São seres que emanam da terra, como acreditavam os gregos antigos.

Seria imprudente afirmar que os povos antigos não buscavam uma explicação racional para os fenômenos. A explicação racional estava justamente na fé que demonstravam. Neste caso, a fé é como o encanto (RIBEIRO, 2004). Este encanto diante dos fatos extraordinários como um relâmpago, erupção vulcânica, terremoto ou diante de eventos mais simples como a chuva, a noite ou o som é facilmente entendido se levar-se em consideração a ação inebriante que as labaredas de uma fogueira ainda nos causam.

É preciso realizar um exercício de imaginação a fim de evitar a racionalização que o cérebro humano nos conduz de modo autômato. Se conseguirmos este grau de abstração, podemos, por um momento, ficar maravilhados com a reação que nossos ancestrais tiveram quando, deparados com o desconhecido, sentiram o prazer, a dor, o sangue e a vida e, ao mesmo tempo em que o outro sentia a dor, o sangue e a morte no ciclo nascer, viver, copular, morrer. Se para entender-se já há o deslumbramento, para entender o exterior, quando a noite caía e quando o dia levantava sem qualquer ação humana, só uma explicação seria pura: são manifestações de uma força além do cotidiano viver, morrer a que todos estão submetidos.

Essas manifestações são, sem dúvida, a expressão máxima do pensamento místico como compreensão do mundo mágico. É o acreditar que “lá” há algo que “aqui” não há, mas mesmo que “aqui” não esteja se importa com o que “aqui” acontece, pois interfere da forma que quer “aqui”, seja com chuvas que ajudam as plantações, seja com chuvas que arrasam as plantações. Daí surge a grande pergunta: “por que?”.

Os seres humanos têm o desejo de atribuir ao conhecimento uma finalidade. Todo conhecimento deve ter uma finalidade, pois é pela finalidade de um conhecimento que o ser humano racional identificará se vale a pena ou não conhecer aquilo que se dá a conhecer. A questão é que não há finalidade no objeto a ser conhecido, assim como não há finalidade no o conhecimento, pois o conjunto de atribuições dadas a uma coisa não são necessariamente a coisa em si. Afirmar que é possível descobrir a essência, ou seja, aquilo que faz a coisa ser aquilo que ela é, em sua totalidade, é presunção.

Não se afirma com isso que o ser humano não consiga atingir a realidade. Para o Idealismo tudo o que o homem conhece é atribuição humana, pois as coisas não se apresentam ao homem. Uma árvore jamais disse ao homem: “Olá, eu sou uma árvore.”. No entanto, não é por isso que a realidade não possa ser captada pelo homem que vê, toca, sente, experimenta e mata uma árvore. Deste modo, as coisas são nada em si mesmas, mas o ser humano, como juiz, arbitra e diz o que são.

Se for o homem quem descreve o que as coisas são, então se segue o convencionalismo para o nominalismo e daí para os inúmeros discursos acerca do objeto, mas o fundamento do discurso que aparentemente está na realidade da coisa já é o resultado de uma convenção.

Agora os termos ficaram frágeis, mas é que ao falar do mundo antigo, bruscamente (devido a falta de espaço nestas parcas linhas) pulamos até os sécs. XVIII e XIX. O que era antes a compreensão da realidade como fé e razão sem divisões, torna-se inviável, pois o homem salta para a compreensão de que apoiava sua hermenêutica em conteúdos sacralizados, mas que foram construídos pelo próprio homem.

É justamente nesta separação entre a fé e a razão, que muitos enxergam como inimigas e que deveriam afastar-se, que D. Miguel de Unamuno confirma a inimizade entre elas e exatamente por isso a intrínseca relação e dependência entre elas.

Unamuno indica que a “história da filosofia é em rigor uma história da religião.”. De fato, ambas meditam os acontecimentos da vida e o homem em sua pequenez e potencialidades. Os mesmos desconhecidos prazer, dor, sangue, morte e vida entre outros que surpreendiam seres humanos primitivos e que os forçavam a questionar o mundo e a si mesmos são também os objetos da reflexão da filosofia e da teologia.

A teologia e a filosofia são as palavras dos homens perante os mesmo fenômenos. Com o tempo houve o distanciamento entre elas, como já foi demonstrado acima, mas ainda que a filosofia priorize a razão e a teologia priorize a fé, promover o isolamento entre elas é ignorar que são estudos interdependentes e que jamais serão completos enquanto não retornarem ao enfoque primordial do momento em que foram gerados juntos. Com esta afirmação, não se aprova que o mundo volte a ser entendido como encantado, mas sim que haja também o espaço para a busca da compreensão do lado místico.

Nem a Filosofia deve ser submetida à Teologia e nem a Teologia deve ser submetida à Filosofia sob pena de ver ressurgir a Teologia Natural e a Teologia Revelada e o definhamento da Filosofia da Religião, o que seria um passo para trás de duzentos anos.

O Brasil ainda está na Idade Média e, ao contrário dos países da Europa que discutem a possibilidade de um discurso pós-metafísico, aqui Deus é realidade inquestionável, talvez pela total influência da obra de Schleiermacher que nem sequer os líderes religiosos conheçam, mas que a usam como teólogos liberais que são. Aqui, no Brasil, é a experiência que vale. A razão não pode questionar a fé, pois é da Bíblia e da boca de Jesus que se obtém o argumento de que os sábios (entendidos como representação da razão) não discernem as obras divinas, “Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.” (Mateus 11.25). A fé livre de qualquer crítica é supervalorizada, como uma fé cega que não precisa descobrir e pensar o objeto que a motiva. Mais uma vez é da Bíblia que se consegue o argumento e mais uma vez da boca de Jesus, “E disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz.” (Lucas 7.50).

Não se pode importar as obras européias que estão mais de duzentos anos à frente do Brasil e esperar que sejam confortavelmente aceitas. Será preciso muito trabalho e muita desconstrução até que seja possível entender que as nossas palavras são a única resposta que temos diante do silêncio e que elas mesmas são silêncio. O giro antropológico de Hegel ainda não aconteceu no Brasil. Os discursos acerca de Deus têm primazia e todos os líderes religiosos falam dos atributos divinos como se dele realmente pudessem dizer algo que não apenas especulação. Falam como se tivessem recebido as revelações no monte Sinai.

Enquanto se especula sobre Deus como se estas fossem verdades absolutas e não considerações humanas, a religião não é enfocada. É preciso estudar a religião considerando e com a ajuda de outras ciências sociais. É imperativo que os teólogos e filósofos ouçam a sociologia, a psicologia e a antropologia entre outras, pois todas têm como desejo a compreensão do homem em sua relação com o mundo.

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