sexta-feira, 23 de abril de 2010

139. O Inferno de fogo

Há muito tempo eu ouvi a pregação de um pastor que mencionava algumas razões que justificavam (e justificam) a pregação da mensagem do Evangelho. Dentre as razões que ele mencionava estava "o terror do inferno".

É possível rever esta mensagem em muitíssimas pregações hoje em dia. É uma mensagem muito utilizada. Descrevo como funciona:

O responsável pela pregação, pela mensagem, pelo momento de reflexão ou qualquer outra coisa que venha a substituir a palavra "sermão", não precisa de mais do que 10 versículos para conseguir o objetivo a que se dedica. As passagens são do livro "Apocalipse" e de "Mateus". As passagens falam do "lago de fogo" e do "pranto e ranger de dentes". Cada passagem é dirigida a um grupo específico em um momento específico, mas isso não importa para o pregador. "O texto fala para nós!" E por falar para nós é que o texto diz o que se quer que ele diga. Se falasse para aqueles a que foi destinado, talvez falasse coisa diferente. Enfim, fala e fala do inferno e do terror que deve ser o tal local inóspito e do sofrimento que as pessoas sofrerão por toda a eternidade. Quem ouve fica aterrorizado com tal visão e deseja a todo custo se salvar (entendemos aqui a "salvação" como os grupos a entendem, ou seja, a aceitação de Jesus como salvador livra do inferno de fogo). Quem já é salvo sente a necessidade de salvar outras pessoas, afinal, é tão fácil! Basta pregar e pregando as pessoas conhecerão o que as espera e optarão por fugir do caminho mal, se arrepender, se converter, aceitar a Jesus e viver no Céu e não no lago de fogo.

Desculpem o longo parágrafo. Está tudo aí. Só não coloquei as passagens utilizadas, por que quero me ater a outras passagens. Aquelas presentes no folheto.

Folheto? Outro? Pois é...

Lembram da segunda-feira catastrófica? Aquela da chuva? Pois foi nesta segunda que recebi um folheto com o título desta postagem.

Estava no ônibus. Janelas fechadas. Abafado. Calor insuportável. Ruas alagadas. Trânsito caótico. Entra um senhora falando que a chuva não impede ninguém de fazer a vontade do "Senhor". Entrega folhetos à todos os presentes. Quando chega a minha vez de receber o tal folheto, ela diz, sem me olhar nos olhos:

"Uma palavra de despertamento...".

O folheto era branco com letras vermelhas. Tenho-o aqui a minha frente. Há a imagem de um homem aparentando indiferença. Este homem tem chifres. Abaixo dele estão pessoas com expressões de dor. Há fogo em toda a imagem. Há um borrão que parece ser um morcego. Se é, não sei. Parece. Sou fã do Batman, então o apreço pelo folheto sofre uma drástica queda. Estão escritas as seguintes palavras:

20.000 GRAUS
E SEM UMA GOTA DÁGUA

O INFERNO DE FOGO
ALMAS PERDIDAS TORTURADAS
QUEIMANDO PARA SEMPRE!

Isto é o que está escrito na capa. Dentro do folheto há um texto longo que não vou transcrever aqui. Resumo-o com a fala da senhora que o entregou. É uma palavra de despertamento contra o inferno.

O autor tem a coragem de dizer que "Um dia, no INFERNO, você não terá que ser incomodado por algum cristão tentando entregar-lhe um folheto evangelístico.".

E trata diretamente com o leitor. Usa "você" e dispara uma série de acusações, previsões, alertas e apelos recheados com várias passagens bíblicas.

Esta postagem é justamente para analisar o folheto e suas passagens.

Qual primeiro? Folheto ou passagens?

Passagens? Ok.

A primeira passagem utilizada é a de Lucas 16.23-24. O texto não está presente no folheto, mas eu o escrevo aqui:

23 E no inferno, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio.
24 E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama.

Esta versão é propícia. Vamos lá.

Em qual língua o Novo Testamento (NT) foi escrito? Grego. No grego existia a concepção parecida com a atual para o inferno? Não. O que existia então? Existia o termo "Hades". Está escrito "inferno" no texto bíblico? Depende. No grego não está escrito o termo "inferno". O termo traduzido pela Bíblia de Jerusalém como "Mansão dos mortos" é "Hades". Então por que o termo "inferno" é usado?

Duas razões:

1a) O termo foi empregado como oficial tendo em vista que Jerônimo (347-420) o utilizou na Vulgata, a tradução da Bíblia para o Latim e esta se tornou a versão oficial da Igreja Católica. De fato, a Vulgata tem no versículo 22 o seguinte final: "foi sepultado no inferno".

2a) Há uma constante identificação de figuras religiosas de outras épocas com figuras atuais. Há uma necessidade de pensar da forma que o "antigo povo de Deus" pensava. Esta necessidade de identificar-se com os cristãos primitivos pode ser uma tentativa de se aproximar do evento cristológico ou do próprio Deus do Antigo Testamento (AT) através da adoção de práticas comuns.

Bem, Hades não é Inferno. Hades é a morada dos mortos. Para todos os mortos. Se há uma separação entre os bons e os maus, então já não é Hades. É uma mudança de entendimento de um conceito, mas se mudar o entendimento é natural e o significado do termo no contexto em que era utilizado não é necessário, então por que usar o texto? Escreve-se qualquer coisa que atenda as necessidades e ponto final.

Não é inferno. Não volto a este versículo. Se fosse um folheto intitulado "O Hades de Fogo" eu continuaria com o versículo. Mas não é.

Próximo!

Mateus 23:33. O texto está escrito no folheto. Eis:

"Serpentes, raça de víboras; como escapareis da condenação do inferno?".

Outra ótima tradução.

São palavras de Jesus, mas Jesus não falou isso. Ele utilizou a palavra geena no final. E o que era a geena? Era o local utilizado pelos habitantes como um depósito de lixo. Jogavam o lixo naquele espaço aberto e levantavam monturos (isso mesmo).

É fácil imaginar este local. Basta lembrar dos lixões que existem hoje. Todos os detritos em decomposição (não havia reciclagem na época) liberavam gases tóxicos que facilitavam a combustão dos materiais, logo, é um local onde o fogo sempre queimava. Há a teoria de que era o local usado para queimar o lixo também, mas não posso apresentar por que não sei as referências necessárias.

E as pessoas que se alimentavam dos detritos? Ser condenado a estar num local desses deveria ser terrível, mas é do "inferno" que o texto fala? Não. É do depósito de lixo da cidade. É da geena.

Próximo!

Salmos 9:17 Texto do folheto:

"Os ímpios serão lançados no inferno, e todas as gentes que se esquecem de Deus."

Salmos? Sim. AT então. Se é AT, então é de uma perspectiva não cristã. É judaica. Judeu acredita no Inferno? Não. Na época do AT havia sequer a ideia de inferno? Não. Então é do "inferno cristão" que o texto se refere? Uma leitura do texto como está no folheto prejudica demais o entendimento da passagem e compromete a resposta.

O termo usado no hebraico é "XEOL", também conhecido como "Seol" ou "sheol". Para os judeus, o Xeol era o lugar para onde todas as pessoas desceriam, não importando se tivessem sido boas ou más durante a vida. Era o local onde não havia mais nada. Era o local de sono, de repouso. Só. Várias passagens demonstram como o povo do AT entendia o termo. Colocam na boca de Jacó a expressão da descida para o Xeol: "Não, é em luto que descerei ao Xeol para junto do meu filho.". É algo certo. Não era algo que poderia escolher. Era algo tido como definitivo e imutável.

Então não é "inferno". É Xeol e este não é o inferno. É o mundo dos mortos de um povo há 2600/2700 anos separados de nós!

Próximo!

As demais passagens utilizadas falam da esperança escatológica, mas não mencionam o inferno, limitando-se a usar "fogo eterno" e "lago de fogo", mas não mencionam o inferno. Como já sabemos que Jesus utiliza uma imagem comum àquele povo para apresentar sua mensagem, não vejo por que abordar as demais passagens. São apenas mais repetições metafóricas.

Claramente o texto não se sustenta com as passagens apresentadas.

Agora o folheto.

É no mínimo desrespeitoso entregar a alguém um texto que diz: "Você estará gritando e implorando uma gota de água para refrescar sua língua ressecada! MAS SERÁ TARDE DEMAIS!".

E pior ainda!

Sem que saiba qualquer coisa a meu respeito, recebo o apelo: "Meu amigo, eu apelo a você, em nome de Jesus, que abandone sua vida pecaminosa e perversa e clame por uma vida nova em Jesus Cristo.".

Meus amigos não dizem que tenho uma vida pecaminosa e perversa. Não dizem por que não têm motivos. Liberdade eles têm. Como se pode esperar alguma simpatia de alguém a quem se diz que leva uma vida de pecado e de perversão?

Talvez o que mais falte aos cristãos seja o amor mesmo. Amor que consegue ser educado na entrega de um folheto. Amor que não julga as pessoas. Amor que trata as pessoas com carinho. Amor que não exige qualquer atitude das pessoas. Amor que é simples. Simples como um "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei." (Mateus 11.28).

O des-amor atual é aquele que acusa. Que julga. Que castiga.

Quanto mais as pessoas tentam ser cristãos como aprenderam, mais distantes ficam de Jesus.

Não agem assim por que são maus. Agem assim por causa do amor. Mas este amor é convertido em des-amor. É por que amam o cristo e querem livrar as pessoas do inferno que acusam, julgam e castigam. Por isso não fico ofendido quando recebo um folheto deste. Fico triste de saber o quão distante ainda estamos.

Talvez um dia o terror do inferno não seja maior do que o terror de maltratar o outro e o des-amor não esteja mais encoberto nas densas trevas da leitura doutrinária, sendo possível ver e entender na palavra "Hades", o Hades, na palavra "Geena", a Geena e na palavra "Xeol", o Xeol.

Talvez um dia ter de impregnar alguém de terror não seja mais necessário. Afinal, é uma mensagem de amor ou de medo?

4 comentários:

  1. Simples assim: Gostei muito do texto. Realmente entre todo o caos formado naquela segunda-feira, uma boa reflexão se tirou. Pena que você precisou esta num 234, enclausurado e abafado...

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  2. Nessa você foi fundo hein!? Significado e origem das palavras, gostei!!
    Limito-me a fazer coro com sua análise final sobre o amor que ultrapassa a fronteira do desamor, colocando uma passagem que já citei em alguma outra postagem:
    I Jo 4,18: " No amor não há temor. Antes o perfeiro amor lança fora o temor, porque o temor envolve castigo, e quem teme não é perfeito no amor"

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  3. Estar naquele ônibus foi realmente desconfortável, mas que se diga de antemão que não estava no 234. Estava no 225. Parece besteira, mas é um exemplo de interpretação que se coloca dentro do texto...rsrsrs

    E valeu a pena ...ou não!

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  4. Obrigado pelo versículo...seria um bom final com esta passagem!

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